segunda-feira, 1 de junho de 2020

da rotina

Você me faz querer ter cama limpa todos os dias.
Sapatos engraxados na sexta-feira e cinema nas terças.
Você me faz querer ter flores em cima da mesa,
fazer compras no supermercado ás 10 da noite.
Me faz querer tirar o lixo todos os dias - sem falha.
Me faz querer ter a mesa posta, o jantar servido, o filme velho repetido.
Me faz querer ter a casa limpa, ensolarada na manhã de sábado.
Me faz querer ir ao médico quando prometo ir pra cuidar do coração, tripas, coluna, dor de cabeça, visão, úlcera.
Me faz querer ir no Centro só para caminhar.
Me faz querer sair do trabalho correndo, todo dia para te esperar de banho tomado, cabelo penteado.
Me faz ter medo não poder acordar, caminhar ou falar.
Me faz correr contra o tempo, a cada segundo perdido fora de casa.
Me faz levantar da cama e fazer a barba de mais de uma semana.
Me faz dizer coisas absurdas enquanto você ri sem parar.
Me faz querer coisas impossíveis para mim.
Me faz querer ter casa, cachorro, filho na escola, conta pra pagar, mulher para cuidar, boca pra calar, briga para voltar a se amar.
Me faz esquecer tudo quando cruzo o teu olhar.
Me faz parecer idiota, exausto, confuso, teimoso, absurdo.
Me faz lembrar que esqueci de comprar o vinho para receber teus pais na sexta.
Me faz querer tudo demais.
Me faz perder completamente o senso da minha maciez, a minha lucidez.
Me faz querer ficar até mais tarde quando eu já deveria estar no trabalho.
Me faz querer sempre o mesmo.
Me faz rir sempre do mesmo.
Me faz sempre o mesmo.
Me faz o mesmo de sempre.
Me faz te amar absurdamente até meu coração apertar e a minha vida não fazer mais nenhum sentido a não ser que você me faça fazer.

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

de ser de novo terra

Te visito e me revisito.
Não é fácil lidar com tantas pedras e rugas, eu sei.
Quando eu saio, enxergo esses buracos e vazios do caminho
Antes veludo, agora terra
Terra de gosto salgado
Terra que se espalha assim como tu tem te espalhado em mim durante todos esses anos.

As coisas que eu quero e que preciso te falar e que não deixas escutar 
Gosto de saber que por fora tem rugas 
E por dentro?
Dentro pode ser de poeira de terra vermelha que fica impregnada na pele 
Até formar rugas, danos e secar.
Secar até rachar
Secar até se desfazer e virar pó outra vez

Por quê não me deixas ver tuas rugas?
Por que não me deixas ver tuas marcas? 
De pó.
De terra.
Do seco que o caminho tem

Tocar em ti até a nova chuva chegar
Tuas rugas, teus calos
E meus calos com as tuas rugas.
Andar sobre a terra vermelha que sangra e que te toca.
Ser de novo terra e não querer ser veludo
Ser terra que move, que seca, que voa.
Ser tudo o que terra pode ser.
Olhar as marcas e as rugas no espelho
Limpar a terra do espelho e se ver
E ser terra outra vez.

domingo, 31 de dezembro de 2017

de próprio punho




Ás vezes me bate aquela nostalgia
Pego aquele caderno que fica ao lado da cama e te escrevo outro bilhete de próprio punho.
Deixo junto dos outros que não te entreguei.
Esqueci de entregar.
Junto daqueles poemas do Vinícius.
E na minha rádio insiste o Chico em cantar
Um monte de coisas que agora já fazem sentido.
Do tempo
Quanto tempo!
Do mar, da água e até de passarinho.
Todo ano, eu insisto em voltar mas logo lembro que esses bilhetes estão amarelando dentro desse caderno.
É tanto calor.
E os meus punhos doem mas sempre chega o dia de voltar e colocar mais um bilhete naquele caderno.


Outra vez Chico aparece e eu penso que pode ser Vinícius.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

do tempo

não sei se tu te lembras quando era tarde
todos os dias a gente marcava de se encontrar em algum lugar depois do trabalho.
tinham dias que eram insuportavelmente frios e noutros eu tava com cara de poucos amigos.
naquela época a gente já se chamava de amigos, o que de fato, nós éramos e sempre fomos
a gente nem repara na quantidade de coisa, gente, ônibus, plano ou dinheiro que poderia ter na volta
porque a gente já era amigo.
a gente já podia sentar  num banco de praça todo dia depois do trabalho e não precisar falar
porque a gente já era amigo.
me lembro que foi nessa época a gente nem gostava dos nossos empregos,
éramos duas crianças, duas pessoinhas que nada sabiam mas que sabiam que todo dia era dia de marcar de se encontrar naquela praça e conversar.
às vezes nem era conversar.
O que de interessante duas pessoinhas teriam pra falar?
De quanto achavam que era confortável e seguro ter alguém com quem ficar em silêncio no meio de uma praça escura?
Pois bem.
me lembro também que nessa época a gente achava que não sabia de nada
e hoje eu tenho certeza que eu não sabia de nada e que não sei de nada até hoje.
apenas o que sei é que a gente era amigo
e gostava de dividir o tempo fora de casa juntos
porque era bom ter um silêncio cúmplice ali repartido um com o outro.
porque era engraçado e era estranho ter criado esse mundo paralelo de amigos que a gente criou.
sabe? até hoje não sei se tu entende que a gente tinha um mundo só nosso.
Só nosso, cara.
Lembra?
Onde a gente inventava o que era necessário ter e saber.
onde a comunicação era de silêncio-cúmplice. unicamente silêncio-cúmplice.
e o tempo? o tempo nem existia.
porque a nossa coisa é de parar no tempo.
tu és o meu caro amigo do tempo.
nele eu te vejo.
no tempo.
e foi dificil depois de todos esses anos, meu amigo, todos esses anos em que a gente permanece amigo.
você ainda é meu amigo, lembra?
é porque o tempo fora da praça foi outro.
mesmo quando eu sento em outro banco por cinco segundso, eu penso no tempo de lá.
sério, meu camarada.
a gente era muito amigo e aquele universo era único.
memorável.
sempre que eu voltava pra casa, eu colocava a mão no bolso e pensava: Eu esqueci o meu relógio.
porque o meu amigo do tempo não deixa o tempo passar
ele permanece comigo
ele ficou
ele continua comigo toda vez que eu me olho no espelho e assumo que ainda sou uma criança do tempo do meu amigo do tempo.
meu amigo, porque tu não apareces mais naquele nosso mesmo horário?
a gente ainda é amigo, eu só perdi a hora.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

de quando eu atravessei as pontes

Logo que cheguei, percebi que carregava pouca coisa. 
O peso foi sendo deixado pelo caminho
quanto mais pontes conhecia, mais pesos eu deixava. 
joguei tijolos, pedras, pedaços sobre o rio
e tinha dias que ele ficava mais bonito e mais cheio, 
e em outros, mais feio e mais vazio. 
logo que regressei, me deparei com caixas do que não cabiam mais em mim. 
Coisas que esqueci, coisas que preferi esquecer, coisas que não lembrava. 
Escritos e manuscritos fragmentados, despedaçados
como se me fotografasse na época que escrevi...
que esqueci. 
da outra vez que fui, senti frio. 
Circulei pelas ruas que amava e escutei o vazio. 
depois de tantas pedras e tantas pontes,
como eu ia querer que fosse o mesmo? 
Como poderia ser o mesmo de novo sem todos os pedaços que desfiz. 
já não faz mais sentido
já não faz 
já não tem mais motivo.
já não tem mais pedidos.
não mais.
não mais. 
E se eu tivesse me perdido, haveria algum pedido? 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

das três folhas

Te escrevi uma carta em três folhas:
Você recebeu,
(não) leu
e não sabe o que perdeu.

cartas de abril

Estou relendo todos os livros dos quais tu me falastes.
Tenho pensando sobre.
Tenho andado meio cansada
As fotos já não me doem mais - tanto. 
Não me lembro exatamente do que tu me disseste na última vez que nos vimos.
Lembro dos teus olhos naquele dia, lembro do tom da tua voz, 
Lembro que queria me dizer alguma coisa e não disse. 
Lembro, até porque escrevi sobre isso uns dois dias depois. 
Te mandei alguns recados - acho que foram meio incompreensíveis, sei lá, pois não tive resposta.
Vi teu nome em algumas listas
E que nome lindo é esse que eu também tenho e que teria de novo para poder usar junto com um ponto final, bem pontuado em tudo o que eu fosse assinar. 
Te escrevi algumas vezes. Recebeu? 
Não que eu quisesse - ou até mesmo, esperasse  - uma resposta ( isso não é o principal).
Talvez, não aches certo continuar esses assuntos. Deixa de lado. 
Mas pensa sobre eles quando tudo está a ponto de explodir. 
Não te escrevi mais desde Abril. 
Abril já foi. 
Já li outros livros.
Já fui a outros lugares. 
Já não falo mais. 
E essas cartas que não tiveram respostas, eu respondi para eu mesma. 
Enfim. 
Ao fim. 
Até que enfim. 


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

devolvido ao remetente


Sabe quando tu carregas um amor que já não sente que é mais teu 

mas sabes que ele te leva e te dá forças? 
Sabe?
Sabe aquela sensação de não conseguir mais pedir por ele,
para que esse amor seja teu de novo, sabe?
Sabe quando esse amor te fazes buscar outros amores? 
Não amores como este amor 
mas amor de buscar um pouquinho mais de vontade de continuar a caminhar, 
de se sensibilizar com o céu, com os velhinhos na rua, com as crianças brincando.
Sabe?
Sabe quando esse amor te dá uma vontade de olhar só pra dentro ou pra mais longe?
Sabe, esse amor de querer ser quieto, pacato, um pouco mais grato, um pouco mais sensato.
É. 
É esse amor que ficou.
É esse amor que tu deixaste e que eu não tenho coragem de devolver-te.
É esse amor que eu consigo ter de teu. Nenhum outro. 
É desse outro amor que eu não tenho coragem de pedir de volta 
mas tenho amor pra este teu amor.
Tenho amor pelo amor teu que me sobrou. 

sábado, 8 de setembro de 2012

senhor do seu lugar


Como se eu não percebesse
Como se tu não soubesse 
que um dia  eu parei ali,
num lugar qualquer e te vi. 
Te vi distante no cinza implacável do lugar.
Te vi em cores absolutas.
E era feito de sinais,
eu era feita de palavras
e que palavras, já não cabem mais  - pensei comigo mesma aconselhando o amigo meu. 
Tanta coisa, tanta nuvem  por aí desbotando no céu.
Então, tu também paraste.
Deve ter pensado em uma coisa ou dias. 
Mostrou as mãos de desconfiança
 - Como queres me dar o que não cabe nas tuas mãos, senhora? 
As tuas mãos, 
senhor de nada no mundo, guardaram-se.
Ali parado, 
não sabia se podia atravessar
retornar ao seu lugar  
 - cadeira que ficou vaga.
Teve medo do meu esperar...
Minhas mãos pequenas mas hoje, de senhora, mostrei. 
Assim que saí do lugar,
guardei-as abertas no bolso da saia
 - Um dia eu vou - parado ele pensou
e logo foi embora.

conversa fiada


É, moreno. 
Toda essa conversa fiada é sobre nós.
Que nunca aconteceu. 
Eu sei.
É sobre tudo o que deixamos passar.